terça-feira, 21 de outubro de 2014

Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura. Um tédio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares

Só o palrear dos grilos acompanha o lusco fusco matinal em que me sento. Acendo um cigarro só pelo prazer de ver o fumo competir com a neblina que se me assenta na pele. Arrepiei-me e tu nem deste conta. Presságio ou não do teu apartamento. Quem sabe? A manhã ameaça já despontar, o relógio parou entre as sete e as oito, e tu desenhas ainda sem parar. Desenha-me outra vez, penso para dentro, enquanto queimo mais um bafo no cigarro. Despi-me das amarras e fui tudo o que nunca alguma vez pensara ser possível. A pessoa mais feliz do mundo, mesmo depois de tudo. Mesmo depois de tudo, a pessoa mais feliz do mundo. Doce privilégio esse, amargo o gosto de quando se evapora a gota última desse elixir que chamam de felicidade. Humedeço os lábios, em te pedindo na penumbra da manhã um último beijo que nos enleve para sempre no chamamento que o destino nos faz. Que fragmento bizarro, esta madrugada abafada e disfarçada de fria. Nunca te sentaste comigo nestes degraus a apreciar a quietude do campo, a inércia da vegetação, a diversidade dos teus verdes. O mundo jaz aqui aos nossos pés, este chão, estas fundações, este pedaço de terra onde nos pertencemos noites sem fim, onde o mundo começa e acaba em nós. Pouso os pés descalços no chão frio e sinto a tua mão descer-me sobre o ombro, a chamar-me para a tua cama. 
Vou já, meu amor. Espera por mim, que vou já, meu amor.

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