sexta-feira, 21 de março de 2014

sentidos



A evolução requer que se reúna o batalhão dos sentidos. A construção de novas memórias olfactivas, o desconstruir dos pontos de vista, a reorganização interna dos sons, a procura de paladares desconhecidos, a sensibilidade à flor da pele estimulada por novas sensações. Não é fácil arrancar o rosto mais familiar de todos da cidade que nos é também a mais querida. Menos fácil ainda é arrancá-lo à linha de horizonte que desenha o mar, porque o mar é igual onde quer vá, é arrancá-lo às nuvens que se desenham no céu, porque invariavelmente o céu e as nuvens são iguais de onde quer que os veja, é arrancá-lo a todos os sítios onde insiste em sobreviver estampado, vívido, incómodo. Embora não deixe de ser um rosto difuso e cada vez mais esbatido pelas falhas da memória, é essa mesma memória que traiçoeira mantem vivas as ausências que mais doem, renovando-as onde já não fazem falta nem são desejadas, mas mantendo-as vivas. Continuo à procura de sítios onde não substituam moléculas nem poeira cósmica deixadas pela tua passagem. São poucos, alguns já os conheço e outros hei-de descobri-los. Até os ter todos para mim, vou contornando um vulto teu que volta e meia se me assoma, para me lembrar das palavras do poema, que o amor é uma doença, quando nele julgamos ver a nossa cura.

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