segunda-feira, 3 de junho de 2013


photo ©Ricardo Brito 2013



O ritual já pouco ou nada muda já vai para muitos anos. Ou serão rituais? Deverá considerar-se o conjunto das tarefas e por isso são rituais no plural? Ou é só o dia que conta por inteiro e assim o ritual é um só e articula no singular? Bom, também pouco importa. Tenho as flores à espera e o gato também já reclama das papas que não chegam.

Assim de repente, acho que o dia que nunca mais esqueci foi o dia em que cheguei a Lisboa. À época, ainda se aportava ali no Cais das Colunas, e ficava-se logo esmagado com a prepotência do homem a cavalo no meio da praça, ladeado por todos aqueles edifícios maiores do que algum que houvesse visto. Bah, mas aquilo hoje já pouco conta, é para inglês ver e já não tira o fôlego a ninguém. Mas quando cheguei, senti-me tão ou mais emigrado lá da terra quanto ou outros todos que foram para França, para aqui e para ali, tais eram as diferenças de cores, de sabores, de cheiros, dos ruídos! E eu que nem sapatos trazia calçados, verdade verdadinha! De pé descalço, toquei esta terra pela primeira vez, diminuído na soberba daquela praça que me esmagou e me fez ainda mais pequeno, agarrado à trouxa que trazia, meio pão de azeite, um cantinho de chouriço, e no cantil, vinho já nem vê-lo. Eram outros tempos, a comida era pouca e o calçado ainda menos – ou o dinheiro para os comprar, os anos são tantos que já nem distingo bem. Mas também o que interessa? Não deixo descendência, não tenho a quem contar estas histórias. Da família, nunca mais soube nada. Amigos também nunca foram muitos, e os poucos que havia foram padecendo por esses hospitais fora, uns no Santa Marta, outros ao Santo António, e tanto foi, tanto foi, que fiquei sem nenhum. Aos vizinhos também não os vejo, nem tão pouco me preocupa. Não é agora com esta idade que me vou por a falar com estranhos, só para ter com quem falar. De dia falo com o gato, à noite rego as flores, e assim vou levando.

À parte do dia em que aportei ao Cais das Colunas, em já pouco ou nada distingo os dias que uns atrás dos outros me trouxeram até este em que hoje conversamos. Trabalhei, trabalhei muito. Mas e do que conta? O trabalho está feito, e do que ficou por fazer também ninguém quer saber.

Nem é que pense muito nisso, que eu cá não perco tempo com tontices, o que está feito, feito está e já nada vai mudar. Mas volta e meia, calho a imaginar cá para mim como teria sido se naquele dia nunca tivesse chegado ao Cais das Colunas, se me tivesse deixado ficar pela terra. Se calhar tinha um quinhão de terra, cultivava umas coisitas, e às tantas ainda me tinha calhado em sorte uma das filhas da velha Ermelinda, a parideira lá da terra que tanta saúde pôs neste mundo nos corpos esguios daquelas filhas. Ai, as filhas da Ermelinda. Mas pronto, não calhou a ser assim, e por isso é que lhe digo, que o dia que gravei na memória foi o dia em que cá cheguei. Porque os dias para trás foram todos iguais, e os dias para a frente foram tudo menos diferentes. E o resto olhe, é o que aqui vê, é este regador, agarro-o todas as noites para lhe pôr água e dá-la às flores, é o gato, que tirando as costelas que se lhe vê, lá vai comendo umas coisitas, e é isto.



Ficou bom assim?

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